Uma biografia breve da enguia: Do Mar dos Sargaços à Feira de São Mateus em Viseu, passando pela ria de Aveiro
DOI:
https://doi.org/10.53943/ELCV.0222_126-141Palavras-chave:
Enguias; Escabeche; Feira de São Mateus; Fritadeiras da Murtosa; Ria de Aveiro; ViseuResumo
As enguias – consideramos a enguia europeia: Anguilla anguilla – são peixes que, em certos aspetos, permanecem ainda hoje misteriosos. O seu nascimento ocorre no longínquo Mar dos Sargaços, sendo arrastadas, pela Corrente do Golfo, através do Atlântico, durante cerca de três anos, até ao litoral europeu. Aqui, migram para os rios e estuários, adaptando-se, muito rapidamente, à vida em água doce. As enguias sofrem metamorfoses, crescem e continuam o seu percurso através de rios, ribeiros e riachos até encontrarem um lar com suficiente comida, onde permanecerão até chegarem a uma idade entre 12 e 24 anos. Depois regressam ao seu lugar de origem para se reproduzirem.
Em Portugal é muito antiga a pesca de enguias na ria de Aveiro, assim como o seu aproveitamento para consumo humano. Desde o início dos anos 1940 foi estabelecida na Murtosa a fábrica de conservas COMUR, que privilegiava a conservação de enguias em escabeche. As enguias de escabeche consumidas desde o século XIX na Feira de São Mateus, em Viseu, chegavam da Murtosa em barricas de madeira. Hoje, essas barricas deram lugar a outras de folha de flandres e as enguias da fábrica de conservas, em vez de virem da Ria de Aveiro, são adquiridas noutros países que as cultivam em cativeiro. Sendo uma espécie ameaçada de extinção, são, na Ria, cada vez mais raras. A enguia ainda é, porém, um peixe popular nesta região, inspirando uma série de receitas como, a caldeirada de enguias, a canja de enguias, as enguias à pescador e as enguias de escabeche, que estão documentadas em receituários antigos e modernos. Foi a receita das enguias de escabeche que celebrizou as enguias da Murtosa, sendo as mulheres que fritavam o peixe, as chamadas “fritadeiras” da Murtosa, credoras dessa fama. O peixe, depois de frito, era conservado em molho de escabeche, feito com vinagre, sendo acondicionado e vendido na Feira de São Mateus, em Viseu, e noutras feiras do Centro do país, onde era bastante apreciado. A tradição mantém-se nos dias de hoje.
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