«O tempo de falar chegou!» Significado e importância teológico-política do Apelo à nobreza cristã da nação alemã (12 de agosto de 1520)
DOI:
https://doi.org/10.53943/ELCV.0124_70-93Palavras-chave:
Lutero, Nobreza Alemã, Papado, Alemanha Oriental, Teologia-políticaResumo
O texto Apelo à nobreza cristã da nação alemã, de agosto de 1520, é um dos mais importantes escritos reformadores de Martinho Lutero (juntamente com Da catividade babilónica da Igreja, de outubro de 1520 e Acerca da liberdade do cristão, de novembro de 1520, entre outros). Texto de teor panfletário, não obstante as questões prementes do tempo a que queria responder, representa também um ponto de chegada nas disputas sobre as relações entre os poderes temporal e espiritual (De potestate), que tinham alimentado o debate teológico-político na Baixa Idade Média, nomeadamente no que se refere ao primado do concílio sobre o Papa (conciliarismo), primazia reconhecidamente antiga, e que, pelo menos desde João Quidort de Paris (1273-1306) a João de Gershom (1362-1429), contrariava a reivindicação papal da plenitude do poder (plenitudo potestatis papalis), não só na esfera dos assuntos temporais terrenos, mas também no plano interno da organização e administração da Igreja. A leitura papalista transgredia uma ideia do Papa Gelásio, no final século v, sobre a separação dos dois poderes ou dois gládios: o temporal e o espiritual, conceção sucessivamente traída ao longo de séculos pelo
chamado augustinismo político, o qual, muito significativamente, procurava apoio no livro xix d’A cidade de Deus de Santo Agostinho. Não obstante, Lutero é também um leitor (parcial) de Santo Agostinho e de São Paulo e, como tal, procura pensar a Igreja não a partir da separação, oposição ou subordinação dos poderes, mas da graça e dos carismas (entre os quais o do dominium temporal de um dominus num reino), os quais são indispensáveis para a edificação do único Corpo de Cristo, que é simultaneamente temporal e eterno. Por este viés, todos os ministérios, inclusive aqueles considerados mais humildes, ganham grande valor espiritual (ou secularizam-se, noutra perspetiva). Seja como for, na sequência da Querela das Indulgências, o apelo de Lutero que incita os príncipes alemães à autonomização face ao poder secular de Roma dá espaço depois (à custa de muito sonho e de muito sangue, tem de se dizer) à afirmação dos Estados-nação do sacro-império romano-germânico. Ao mesmo tempo, por via do primado do «sacerdócio comum dos fiéis» frente ao poder magisterial do «sacerdócio ordenado» (potestas ordinis), há neste opúsculo, no que se refere à interpretação e pregação das Escrituras, um potencial muito virulento, explosivo, e mesmo apocalíptico (estamos no fim dos tempos, o Anticristo está à porta, etc.), que, se politicamente rebenta logo nos anos seguintes (1524-1525), nos campos da Alemanha, já de um ponto de vista hermenêutico mais amplo, recupera alguns processos de subjetivação e de apropriação dos «lugares de fala», bem como conceções nominalistas que já vinham ganhando relevância nos séculos xiv e xv, procedimentos que irão aprofundar-se quer na modernidade racionalista (do cogito cartesiano ao Ich denken kantiano) quer na modernidade fideísta do credo (Jansénio, Pascal, etc.). Não obstante, o que se impõe de forma premente, em 1520, é reformar a Igreja, pois «acabou o tempo do silêncio e chegou o tempo de falar!» («Die Zeit zu reden ist kommen»). E é esta decisão de Lutero de tomar palavra o que mais nos importa.
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